O que é o terceiro setor?
Os termos que designam as organizações desse setor são vários: organizações não governamentais (ONGs), organizações sem fins lucrativos, organizações do terceiro setor e, mais recentemente, organizações da sociedade civil (OSCs). O Terceiro Setor é composto pelas pessoas jurídicas de direito privado que não possuem finalidade lucrativa e exercem atividade de interesse socioambiental. Suas possíveis formas de pessoa jurídica são: cooperativas, organizações religiosas, associações e fundações privadas.
A importância das Organizações da Sociedade Civil (OSCs) é evidente e uma consequência natural do amadurecimento das democracias. O setor tem crescido visivelmente nas últimas décadas e desempenha papel estruturante de vigilância social e complementa as funções do Estado, onde os serviços de interesse público podem ser precários. Segundo o Mapa das Organizações da Sociedade Civil do IPEA, o Brasil teve 815.676 OSCs registradas em 2020. Em levantamento do IBGE, o setor representava 14,7% das organizações geradoras de empregos formais em 2016.
O marco inicial da atuação do setor filantrópico no Brasil foi a criação da Santa Casa de Misericórdia de Santos em 1543. Na década de 1930, durante o governo Vargas, ocorreu a primeira regulamentação das instituições do Terceiro Setor. Após o fim da ditadura militar, e com o crescimento da pobreza em virtude do processo de urbanização desordenado, as OSCs tiveram vigoroso crescimento e passaram a ser vistas como importante ator na atenção às demandas sociais e ambientais reprimidas.
A partir dos anos 2000, casos de corrupção impactaram negativamente o setor, quando OSCs foram usadas em esquemas de desvio de dinheiro público. Para regulamentar as atividades dessas instituições, o Marco Civil do Terceiro Setor (Lei 13019) foi sancionado em 2014. O marco busca aumentar a transparência na operação das organizações sem fins lucrativos no país e trata principalmente, mas não exclusivamente, sobre o tema da transferência de recursos do poder público para as OSCs.
A influência de organizações da sociedade civil nas tomadas de decisões políticas é conhecida pelo termo em inglês ‘advocacy’, ou em português incidência política. Esse termo foi cunhado para distinguir a atuação das OSCs da defesa de interesses das empresas privadas, já conhecida pelo termo em inglês ‘lobby’ ou, mais recentemente, relações governamentais.
Sendo um dos pilares de uma sociedade democrática, seria natural que a sociedade civil estivesse no centro dos debates da formulação e implementação de políticas públicas. Contudo, não é isso que ocorre. Há uma defasagem entre a atuação dessas instituições e sua influência na formulação de políticas públicas. Este artigo busca analisar a participação das organizações da sociedade civil na elaboração e implementação das políticas públicas no Brasil.
O caso norte-americano de influência política do terceiro setor
Os Estados Unidos é o país onde a atividade do lobby prosperou rapidamente, tendo sido regulamentada ainda nos anos 1940. A maioria dos países, incluindo o Brasil, ainda não possui regulamentação para essa atividade.
O Terceiro Setor também é bastante robusto nesse país. De acordo com relatório do Centro para Estudos da Sociedade Civil da Universidade Johns Hopkins, organizações sem fins lucrativos geraram 12,3 milhões de postos de empregos formais no país em 2019. Segundo dados da Receita Federal dos EUA, 1,5 milhão de organizações sem fins lucrativos estão registradas e representam cerca de 6% do PIB.
O volume de financiamento da sociedade para as ONGs também tem crescido rapidamente com a criação da mídia digital e com campanhas de enorme alcance e impacto. Segundo dados do Facebook e Instagram, as ferramentas de levantamento de fundos dessas plataformas arrecadaram U$ 5 bilhões entre 2016 e 2021 de 85 milhões de doadores. Em 2021, as causas que mais receberam doações foram as ambientais e humanitárias, em 2020 as ambientais; em 2019 igualdade social e justiça; e, entre 2016 e 2018, saúde mental e direitos das crianças.
Exemplos de influência política da sociedade civil no país são antigas e contam com casos de sucesso em diversos setores como direitos civis, defesa de crianças, mulheres, comunidade LGTQIA+, meio ambiente, entre outros. Ainda nos anos 1960, a campanha pelos direitos civis revelou um alto nível de organização e influência política dos movimentos sociais. A campanha foi bem sucedida e promoveu a criação das leis de direitos civis e direito ao voto para a população afrodescendente em 1964 e 1965. Outros temas tiveram campanhas de advocacy bem sucedidas, como a legalização pró aborto nos anos 1970. Organizações como a NARAL Pro-Choice America lideraram o debate e ainda hoje advogam pelo acesso ao aborto e direitos reprodutivos.
Mais recentemente, a Organization for Social Media Safety liderou campanha de advocacy pela segurança nas redes sociais. A organização elaborou a primeira lei estadual para conter violência em mídias digitais na Califórnia e promoveu forte incidência política pela aprovação da lei. Outros exemplos recentes mostram forte pressão das OSCs de meio ambiente para que bancos deixem de financiar empresas de petróleo e gás. Um estudo da consultoria Ernest & Young mostrou que o setor já registra dificuldade de contratar profissionais jovens em virtude do impacto que causam nas mudanças climáticas. O estudo revelou que apenas 6% dos jovens entre 16 e 19, e 18% daqueles entre 20 e 35 anos, consideram um emprego na indústria de óleo e gás muito atraente.
A incidência política das OSCs no Brasil
Apesar do rápido crescimento do terceiro setor no Brasil, a atuação das organizações da sociedade civil na formulação e decisões de políticas públicas parece não ter avançado na mesma medida. Poucos estudos analisam a incidência dessas organizações na política de maneira transversal e os dados estatísticos nesse tema são escassos.
Embora o advocacy no Brasil ainda não seja tão reconhecido e organizado, alguns setores são exceções. A área da saúde, por exemplo, conta com uma bancada forte de apoiadores, sobretudo no poder Legislativo. O fato de a saúde ser um dos maiores anseios da sociedade durante os pleitos eleitorais é um dos fatores que influencia enormemente esse processo. Além disso, o terceiro setor no Brasil começou na área da saúde e ainda possui um grande número de OSCs dedicadas ao tema. Segundo o Mapa das Organizações da Sociedade Civil do IPEA, são cerca de 9.600 dedicadas à área da saúde.
Quando se compara a atividade legislativa em 2019, último ano antes da pandemia, é possível observar que o número de atividades parlamentares na área da saúde é consideravelmente maior do que em outros temas importantes para a população, como educação, meio ambiente e segurança pública. Segundo o website da Câmara dos Deputados, o número de Indicações Parlamentares do Legislativo para o Executivo sobre saúde foi 608, em educação 363, em segurança pública 131, e em meio ambiente 115. Em número de projetos de lei, o tema saúde teve 1428, educação obteve 28% menos projetos, segurança pública 44% menos, e meio ambiente atingiu movimentação parlamentar em número de projetos de lei 56% menor do que a saúde. É importante lembrar também que, desde 2015, a emenda 86 do orçamento impositivo dispôs que 50% das emendas parlamentares devem ser direcionadas para a saúde.
Em se tratando do Executivo, enquanto o orçamento da saúde foi de R$ 160 bilhões em 2022, o da educação foi de R$ 137 bilhões, 14% menor. O Ministério do Meio Ambiente teve R$ 2,38 bilhões executados em 2021, com corte de 24% em relação a 2020. Além disso, a pasta passou por um total desmonte dos órgãos de defesa ambiental nos últimos 4 anos.
Estudo de caso da influência das OSCs de defesa do meio ambiente nas políticas públicas brasileiras.
Para entender o contexto da incidência política das OSCs de defensa do ambiente, precisamos analisar algumas contradições. Uma pesquisa encomendada pelo IPEC, em 2021, revelou que 76% dos brasileiros acreditam que o aquecimento global está acontecendo, 75% creem que a evolução dos incêndios na Amazônia foi causada por fatores humanos e 45% dos brasileiros dizem já ter votado em políticos em virtude de suas propostas ambientais.
Outro estudo encomendado pela Confederação Nacional da Indústria ao Instituto FSB de Pesquisa em 2020, mostrou que 98% dos brasileiros se dizem preocupados com o meio ambiente, dentre eles, 77% afirmaram estar muito preocupados. O estudo também aponta que 93% defendem que preservar a Amazônia é fundamental para a economia brasileira; 50% se dizem afetados por algum problema ambiental e 77% acreditam que o Brasil deveria destinar mais recursos para a proteção do meio ambiente.
Se dados e pesquisas de opinião revelam que meio ambiente é um tema importante para a sociedade brasileira, há um grande paradoxo com a atuação dos governantes, sobretudo nos últimos anos. É difícil compreender porque os membros do governo, tanto Executivo quanto Legislativo, podem ter negligenciado o assunto nos últimos anos com tantas evidências indicando que o assunto é prioridade na agenda pública. Além disso, a pauta ambiental se tornou de primeira ordem nas agendas dos organismos internacionais e governos estrangeiros em todos os continentes. Enquanto isso, o Brasil caminha na contramão da lógica global.
O apoio governamental nem sempre é fácil para a área ambiental. Isso porque as grandes empresas e grupos com fortes interesses econômicos em geral divergem daqueles que desejam proteger o meio ambiente. Tais grupos de interesse atuam influenciando os governantes em suas escolhas e prioridades, indo, inclusive, contra a opinião pública que apoia iniciativas conservacionistas. Essa tendência não é nova. Desde a publicação do estudo “O que o brasileiro pensa sobre ecologia”, de 1993, essa discrepância entre vontade popular e ações governamentais se evidenciou.
Entretanto, as organizações da sociedade civil que defendem a proteção da biodiversidade e outras questões ligadas à sustentabilidade têm se mostrado persistentes e obtido apoios diversos, muitas vezes de maneiras criativas. Nos últimos anos, quando a proteção ambiental sofreu cortes radicais, alguns direcionamentos se destacaram. Por exemplo, com o Fundo Amazônia bloqueado, diversas OSCs obtiveram apoio diretamente de organismos internacionais, ou mesmo de empresas nacionais e estrangeiras para cumprirem suas missões conservacionistas. É lastimável que se tenha chegado a esse ponto, pois o alcance de ações governamentais quando ocorrem, é incomparável, e a escala que se atinge com trabalhos realizados cooperativamente é exponencial!
Diante dessas reflexões, questionamentos se fazem necessários, especialmente em momentos eleitorais. Por que os anseios da sociedade civil em relação ao meio ambiente não são respeitados pelos governantes? Existe uma desconexão entre os valores ambientais percebidos pela população e os motivos que direcionam as escolhas na hora do voto?
Essas reflexões trazem pistas importantes para o debate e perguntas surgem para além da análise da correlação entre interesses ambientais, voto e priorização das pautas de interesse público. Quais outras forças políticas influenciam a tomada de decisão dos membros do governo que desrespeitam os anseios da população? Quais grupos econômicos estão moldando o debate público ambiental? Quem são seus representantes no governo defendendo a destruição do meio ambiente?
Quem são os defensores das causas ambientais nas esferas públicas? Quais caminhos podemos traçar para ampliar a atuação política das OSCs em defesa do meio ambiente no Brasil? Apesar de importantes, algumas dessas perguntas seguem sem respostas ou, ao menos, sem respostas definitivas. Que venham novos ventos de esperança para nosso país, tão rico em natureza e com tanto a ser feito pela sua proteção.
Autores: Suzana M. Padua, Dra., Presidente do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, Empreendedora Social Folha de São Paulo e Schwab de 2009
Marina Naves, Co-fundadora Interface Advocacy Ambiental
Henrique Bezerra, Co-fundador Interface Adocacy Ambiental
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